Entre carros e pedestres, a cena do morador de rua deitado em um colchão esfarrapado, muitas vezes coberto por uma marquise, se repete nas ruas movimentadas das capitais brasileiras. Qualquer observador percebe o aumento, na última década, no número de pessoas nessa situação deplorável. A raiz do problema social nunca foi de fácil identificação.
Historicamente, o discurso da falta de emprego e de oportunidades de aprendizado foi a tese preponderante. Porém, mais recentemente, o vício em álcool e drogas, com consequências concretas, como a perda do emprego e o rompimento de laços familiares, tem ganhado relevância entre os fatores que levam à degradação da biografia de um ser humano sem rumo pelas ruas das grandes cidades.
Especialistas ouvidos pela Gazeta do Povo apontam que as políticas públicas de repressão às drogas no país foram flexibilizadas durante os governos petistas e que decisões judiciais abriram precedentes para o consumo dos entorpecentes, além do incentivo cultural para o “uso recreativo da maconha”, defendido por partidos de esquerda.
Após quase 20 anos desde a sanção da nova lei de drogas (11.343/06) que limitou a punição ao usuário flagrado com drogas, aprovada durante o primeiro mandato do presidente Lula (PT), o resultado é a dependência química, seja do álcool ou de entorpecentes, como um dos principais fatores que levam as pessoas a morarem nas ruas.
Segundo dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), a população em situação de rua cresceu 38% entre 2019 e 2022 e atingiu 281.472 pessoas no Brasil. Entre 2023 e 2024, um novo aumento foi registrado pelo Observatório Brasileiro de Políticas Públicas com a População em Situação de Rua da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Conforme a pesquisa, o número de moradores de rua chegou a 327.925 no final de 2024, o que representa um aumento de 25% no período de um ano.
Crise de moradores de rua se agrava com processo de descriminalização das drogas
Crítico da lei federal 11.343/06, que restringiu a possibilidade de detenção do usuário de drogas, o secretário de Assistência Social de Florianópolis, Bruno Souza, questiona o aumento no número de moradores de rua nas últimas décadas, apesar da geração de emprego e crescimento da renda do brasileiro durante o mesmo período.
“Alguma coisa não bate no discurso de que morador de rua existe pelas condições econômicas ou por falta de oportunidade. O Brasil, pelo menos no Sul, sofre com uma crise não de desemprego, mas de falta de mão de obra”, afirmou Souza em entrevista à Gazeta do Povo.
Na avaliação do secretário de Assistência Social, o país passa por uma “crise de dependência química” agravada a partir do processo de descriminalização das drogas que está em curso. “Além disso, nós tivemos uma enorme crise moral nos últimos 25 anos. Saímos de campanhas do [movimento] “Drogas, nem morto” na década de 1990, liderado por artistas famosos, para a Anitta defendendo a legalização das drogas abertamente”, declarou.
Para Souza, o discurso pela “humanização” de quem usa drogas teve o efeito colateral de normalizar a prática do consumo dos entorpecentes, o que segundo ele intensificou a “fábrica” de produção de moradores de rua no Brasil. “A mensagem para a sociedade foi terrível. De ‘drogas nem morto’, nós fomos para ‘drogas não têm problema’. O resultado disso é que nós tivemos um aumento de mais de 1.000% no número de pessoas em situação de rua de 2006 para 2024.”
O secretário da capital catarinense afirmou que a migração da população afeta, principalmente, as regiões Sul e Sudeste, que de acordo com ele concentram 65% dos brasileiros em situação de rua do Brasil. Souza disse que os destinos são escolhidos pela “boa condição de esmola” e pelo fácil acesso às drogas, muitas vezes, com passagens de ônibus patrocinadas por outros municípios.
Antes de Souza assumir a pasta, a Câmara Municipal de Florianópolis chegou a aprovar a internação involuntária de dependentes químicos e de pessoas com transtornos mentais em situação de rua, mas a medida não saiu do papel após pressão do Psol e da Defensoria Pública. O secretário aponta que as prefeituras das capitais possuem ferramentas limitadas, com baixo índice de recuperação nos casos de internações voluntárias.
“De cada 100, apenas 10 terminam. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), de cada 10 que terminam, 90% vão reincidir em até um ano. Ou seja, temos que trabalhar com prevenção, não na outra ponta, depois que o problema foi criado”, completou.
Cultura, fiscalização amena e pena branda: a tempestade perfeita para o uso de drogas
Na avaliação do especialista em segurança pública Roberto Motta, o problema dos moradores de rua é tratado de forma incorreta no Brasil por causa do “arcabouço ideológico”. Ele ressaltou que a população de pessoas nessa situação é formada por um grupo heterogêneo, que abrange desde pedintes até suspeitos de crimes.
Motta lembrou que as pessoas com transtornos mentais também estão incluídas no contingente da população brasileira de rua. Ou seja, a abordagem do poder público precisa ser diferente nos casos de saúde mental. “Isso ainda pode ficar muito mais grave por causa da desativação dos manicômios judiciais, determinada pelo CNJ [Conselho Nacional de Justiça], com base na leitura equivocada de uma sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos”, opinou.
Motta também criticou a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que descriminalizou o porte de maconha para o consumo pessoal de até 40 gramas. “Hoje não existe punição nenhuma. Então, o policial não vai parar um sujeito que está fumando um baseado para fazer nada, porque ele sabe que o resultado daquela ação será nenhum”, disse o especialista em segurança pública, autor do livro “A construção da maldade”.
Ele lembrou da campanha contra o cigarro no Brasil, que proibiu o fumo em locais fechados e até propagandas da indústria do tabaco, com sucesso na redução dos fumantes no país. Paradoxalmente, segundo Motta, houve uma mudança cultural com influência ideológica marxista para que a maconha passasse a ser aceita socialmente nos grandes centros.
“O incentivo cultural ao consumo de drogas com a descriminalização, a suavização cada vez maior da legislação e as mudanças na jurisprudência nas cortes superiores criam uma tempestade perfeita que colabora com o aumento de pessoas que experimentam as drogas e se tornam dependentes”, analisa.
Políticas sociais são ineficientes para atender um problema de saúde pública, alerta economista
O economista-chefe do Banco de Desenvolvimento de Minas Gerais (BDMG), Izak Carlos da Silva, afirmou que existem dificuldades de identificação de grupos mais vulneráveis na sociedade para a construção de políticas públicas eficazes. Ou seja, entre a população heterogênea em situação de rua há grupos como os dependentes químicos, com necessidade de um atendimento público diferenciado na área da saúde, sem possibilidade de serem contemplados por outros benefícios sociais por causa do vício no álcool ou drogas.
“A melhor política pública que existe é dar emprego para as pessoas. Eu acredito nisso, mas talvez não seja possível fazer isso sem tratar outras questões sociais, identificando a política pública mais adequada”, comentou. Na avaliação do economista, o aumento da população em situação de rua no Brasil não ocorre pela ausência de políticas públicas para atender a parte mais vulnerável da sociedade, nem em decorrência do sistema econômico.
“Existem benefícios como moradia social, aluguel social e renda básica, mas ainda assim estamos observando o aumento da população marginalizada. O que está acontecendo?” questionou. Para Silva, a relação entre a dependência de drogas e os moradores de rua é um problema de saúde pública.
“Não é o sistema econômico. Não é porque nós não temos políticas sociais. Essas pessoas estão marginalizadas por causa da dependência química. Como é que nós vamos tratar isso? Nós não temos políticas públicas que identificam esse problema, exatamente, e que atendem a esse propósito”, completou.
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